VIDA E OBRA
Aurélio
Agostinho nasceu em Tagasta, cidade da
Numídia, de uma família burguesa, a 13 de novembro do
ano 354. Seu pai, Patrício, era pagão, recebido o
batismo pouco antes de morrer; sua mãe, Mônica, pelo
contrário, era uma cristã fervorosa, e exercia sobre o
filho uma notável influência religiosa. Indo para
Cartago, a fim de aperfeiçoar seus estudos, começados
na pátria, desviou-se moralmente. Caiu em uma profunda
sensualidade, que, segundo ele, é uma das maiores
conseqüências do pecado original; dominou-o longamente,
moral e intelectualmente, fazendo com que aderisse ao
maniqueísmo, que atribuía realidade substancial tanto
ao bem como ao mal, julgando achar neste dualismo
maniqueu a solução do problema do mal e, por
conseqüência, uma justificação da sua vida. Tendo
terminado os estudos, abriu uma escola em Cartago, donde
partiu para Roma e, em seguida, para Milão. Afastou-se
definitivamente do ensino em 386, aos trinta e dois anos,
por razões de saúde e, mais ainda, por razões de ordem
espiritual.
Entrementes - depois
de maduro exame crítico - abandonara o maniqueísmo,
abraçando a filosofia neoplatônica que lhe ensinou a
espiritualidade de Deus e a negatividade do mal. Destarte
chegara a uma concepção cristã da vida - no começo do
ano 386. Entretanto a conversão moral demorou ainda, por
razões de luxúria. Finalmente, como por uma
fulguração do céu, sobreveio a conversão moral e
absoluta, no mês de setembro do ano 386. Agostinho
renuncia inteiramente ao mundo, à carreira, ao
matrimônio; retira-se, durante alguns meses, para a
solidão e o recolhimento, em companhia da mãe, do filho
e dalguns discípulos, perto de Milão. Aí escreveu seus
diálogos filosóficos, e, na Páscoa do ano 387,
juntamente com o filho Adeodato e o amigo Alípio,
recebeu o batismo em Milão das mãos de Santo Ambrósio,
cuja doutrina e eloqüência muito contribuíram para a
sua conversão. Tinha trinta e três anos de idade.Depois da conversão,
Agostinho abandona Milão, e, falecida a mãe em Óstia,
volta para Tagasta. Aí vendeu todos os haveres e,
distribuído o dinheiro entre os pobres, funda um
mosteiro numa das suas propriedades alienadas. Ordenado
padre em 391, e consagrado bispo em 395, governou a
igreja de Hipona até à morte, que se deu durante o
assédio da cidade pelos vândalos, a 28 de agosto do ano
430. Tinha setenta e cinco anos de idade.
Após a sua
conversão, Agostinho dedicou-se inteiramente ao estudo
da Sagrada Escritura, da teologia revelada, e à
redação de suas obras, entre as quais têm lugar de
destaque as filosóficas. As obras de Agostinho que
apresentam interesse filosófico são, sobretudo, os
diálogos filosóficos: Contra
os acadêmicos, Da vida beata, Os solilóquios, Sobre a
imortalidade da alma, Sobre a quantidade da alma, Sobre o
mestre, Sobre a música . Interessam também à
filosofia os escritos contra os maniqueus: Sobre os costumes, Do livre arbítrio,
Sobre as duas almas, Da natureza do bem .
Dada, porém, a
mentalidade agostiniana, em que a filosofia e a teologia
andam juntas, compreende-se que interessam à filosofia
também as obras teológicas e religiosas, especialmente:
Da Verdadeira Religião, As
Confissões, A Cidade de Deus, Da Trindade, Da Mentira.
O Pensamento
Agostinho considera a filosofia praticamente,
platonicamente, como solucionadora do problema da vida,
ao qual só o cristianismo pode dar uma solução
integral. Todo o seu interesse central está portanto,
circunscrito aos problemas de Deus e da alma, visto serem
os mais importantes e os mais imediatos para a solução
integral do problema da vida.
O problema gnosiológico é
profundamente sentido por Agostinho, que o resolve,
superando o ceticismo acadêmico mediante o iluminismo
platônico. Inicialmente, ele conquista uma certeza: a
certeza da própria existência espiritual; daí tira uma
verdade superior, imutável, condição e origem de toda
verdade particular. Embora desvalorizando,
platonicamente, o conhecimento sensível em relação ao
conhecimento intelectual, admite Agostinho que os
sentidos, como o intelecto, são fontes de conhecimento.
E como para a visão sensível além do olho e da coisa,
é necessária a luz física, do mesmo modo, para o
conhecimento intelectual, seria necessária uma luz
espiritual. Esta vem de Deus, é a Verdade de Deus, o
Verbo de Deus, para o qual são transferidas as idéias platônicas. No Verbo de
Deus existem as verdades eternas, as idéias, as
espécies, os princípios formais das coisas, e são os
modelos dos seres criados; e conhecemos as verdades
eternas e as idéias das coisas reais por meio da luz
intelectual a nós participada pelo Verbo de Deus. Como
se vê, é a transformação do inatismo, da
reminiscência platônica, em sentido teísta e cristão.
Permanece, porém, a característica fundamental, que
distingue a gnosiologia platônica da aristotélica e tomista, pois,
segundo a gnosiologia platônica-agostiniana, não
bastam, para que se realize o conhecimento intelectual
humano, as forças naturais do espírito, mas é mister
uma particular e direta iluminação de Deus.
A Metafísica
Em relação com esta
gnosiologia, e dependente dela, a existência de Deus é provada,
fundamentalmente, a priori ,
enquanto no espírito humano haveria uma presença
particular de Deus. Ao lado desta prova a priori , não nega
Agostinho as provas a posteriori
da existência de Deus, em especial a que se
afirma sobre a mudança e a imperfeição de todas as
coisas. Quanto à natureza de Deus, Agostinho possui uma
noção exata, ortodoxa, cristã: Deus é poder racional
infinito, eterno, imutável, simples, espírito, pessoa,
consciência, o que era excluído pelo platonismo. Deus
é ainda ser, saber, amor. Quanto, enfim, às relações
com o mundo, Deus é concebido exatamente como livre
criador. No pensamento clássico grego, tínhamos um
dualismo metafísico; no pensamento cristão -
agostiniano - temos ainda um dualismo, porém moral, pelo
pecado dos espíritos livres, insurgidos orgulhosamente
contra Deus e, portanto, preferindo o mundo a Deus. No
cristianismo, o mal é, metafisicamente, negação,
privação; moralmente, porém, tem uma realidade na
vontade má, aberrante de Deus. O problema que Agostinho
tratou, em especial, é o das relações entre Deus e o
tempo. Deus não é
no tempo, o qual é uma criatura
de Deus: o tempo começa com a criação. Antes da
criação não há tempo, dependendo o tempo da
existência de coisas que vem-a-ser e são, portanto,
criadas.
Também a psicologia agostiniana
harmonizou-se com o seu platonismo cristão. Por certo, o
corpo não é mau por natureza, porquanto a matéria não
pode ser essencialmente má, sendo criada por Deus, que
fez boas todas as coisas. Mas a união do corpo com a
alma é, de certo modo, extrínseca, acidental: alma e
corpo não formam aquela unidade metafísica,
substancial, como na concepção aristotélico-tomista,
em virtude da doutrina da forma e da matéria. A alma
nasce com o indivíduo humano e, absolutamente, é uma
específica criatura divina, como todas as demais.
Entretanto, Agostinho fica indeciso entre o criacionismo
e o traducionismo, isto é, se a alma é criada
diretamente por Deus, ou provém da alma dos pais. Certo
é que a alma é imortal, pela sua simplicidade.
Agostinho, pois, distingue, platonicamente, a alma em
vegetativa, sensitiva e intelectiva, mas afirma que elas
são fundidas em uma substância humana. A inteligência
é divina em intelecto intuitivo e razão discursiva; e
é atribuída a primazia à vontade. No homem a vontade
é amor, no animal é instinto, nos seres inferiores cego
apetite.
Quanto à cosmologia,
pouco temos a dizer. Como já mais acima se salientou, a
natureza não entra nos interesses filosóficos de
Agostinho, preso pelos problemas éticos, religiosos,
Deus e a alma. Mencionaremos a sua famosa doutrina dos
germes específicos dos seres - rationes
seminales . Deus, a princípio, criou alguns
seres já completamente realizados; de outros criou as
causas que, mais tarde, desenvolvendo-se, deram origem
às existências dos seres específicos. Esta concepção
nada tem que ver com o moderno evolucionismo ,
como alguns erroneamente pensaram, porquanto Agostinho
admite a imutabilidade das espécies, negada pelo moderno
evolucionismo.
A Moral
Evidentemente, a moral agostiniana é
teísta e cristã e, logo, transcendente e ascética.
Nota característica da sua moral é o voluntarismo, a
saber, a primazia do prático, da ação - própria do
pensamento latino - , contrariamente ao primado do
teorético, do conhecimento - próprio do pensamento
grego. A vontade não é determinada pelo intelecto, mas
precede-o. Não obstante, Agostinho tem também atitudes
teoréticas como, por exemplo, quando afirma que Deus,
fim último das criaturas, é possuído por um ato de
inteligência. A virtude não é uma ordem de razão,
hábito conforme à razão, como dizia Aristóteles, mas uma ordem do
amor.
Entretanto a vontade
é livre, e pode querer o mal, pois é um ser limitado,
podendo agir desordenadamente, imoralmente, contra a
vontade de Deus. E deve-se considerar não causa
eficiente, mas deficiente da sua ação viciosa,
porquanto o mal não tem realidade metafísica. O pecado,
pois, tem em si mesmo imanente a pena da sua desordem,
porquanto a criatura, não podendo lesar a Deus,
prejudica a si mesma, determinando a dilaceração da sua
natureza. A fórmula agostiniana em torno da liberdade em
Adão - antes do pecado original - é: poder não pecar ; depois do
pecado original é: não poder
não pecar ; nos bem-aventurados será: não poder pecar . A vontade
humana, portanto, já é impotente sem a graça. O
problema da graça -
que tanto preocupa Agostinho - tem, além de um interesse
teológico, também um interesse filosófico, porquanto
se trata de conciliar a causalidade absoluta de Deus com
o livre arbítrio do homem. Como é sabido, Agostinho,
para salvar o primeiro elemento, tende a descurar o
segundo.
Quanto à família , Agostinho, como
Paulo apóstolo, considera o celibato superior ao
matrimônio; se o mundo terminasse por causa do celibato,
ele alegrar-se-ia, como da passagem do tempo para a
eternidade. Quanto à política ,
ele tem uma concepção negativa da função estatal; se
não houvesse pecado e os homens fossem todos justos, o
Estado seria inútil. Consoante Agostinho, a propriedade
seria de direito positivo, e não natural. Nem a
escravidão é de direito natural, mas conseqüência do
pecado original, que perturbou a natureza humana,
individual e social. Ela não pode ser superada
naturalmente, racionalmente, porquanto a natureza humana
já é corrompida; pode ser superada sobrenaturalmente,
asceticamente, mediante a conformação cristã de quem
é escravo e a caridade de quem é amo.
O Mal
Agostinho foi
profundamente impressionado pelo problema do mal - de que dá uma vasta
e viva fenomenologia. Foi também longamente desviado
pela solução dualista dos maniqueus, que lhe impediu o
conhecimento do justo conceito de Deus e da possibilidade
da vida moral. A solução deste problema por ele achada
foi a sua libertação e a sua grande descoberta
filosófico-teológica, e marca uma diferença
fundamental entre o pensamento grego e o pensamento cristão. Antes de
tudo, nega a realidade metafísica do mal. O mal não é
ser, mas privação de ser, como a obscuridade é
ausência de luz. Tal privação é imprescindível em
todo ser que não seja Deus, enquanto criado, limitado.
Destarte é explicado o assim chamado mal metafísico , que não
é verdadeiro mal, porquanto não tira aos seres o lhes
é devido por natureza. Quanto ao mal
físico , que atinge também a perfeição
natural dos seres, Agostinho procura justificá-lo
mediante um velho argumento, digamos assim, estético: o
contraste dos seres contribuiria para a harmonia do
conjunto. Mas é esta a parte menos afortunada da
doutrina agostiniana do mal.
Quanto ao mal moral, finalmente
existe realmente a má vontade que livremente faz o mal;
ela, porém, não é causa eficiente, mas deficiente,
sendo o mal não-ser. Este não-ser pode unicamente
provir do homem, livre e limitado, e não de Deus, que é
puro ser e produz unicamente o ser. O mal moral entrou no
mundo humano pelo pecado original e atual; por isso, a
humanidade foi punida com o sofrimento, físico e moral,
além de o ter sido com a perda dos dons gratuitos de
Deus. Como se vê, o mal físico tem, deste modo, uma
outra explicação mais profunda. Remediou este mal moral
a redenção de Cristo, Homem-Deus, que restituiu à
humanidade os dons sobrenaturais e a possibilidade do bem
moral; mas deixou permanecer o sofrimento, conseqüência
do pecado, como meio de purificação e expiação. E a
explicação última de tudo isso - do mal moral e de
suas conseqüências - estaria no fato de que é mais
glorioso para Deus tirar o bem do mal, do que não
permitir o mal. Resumindo a doutrina agostiniana a
respeito do mal, diremos: o mal é, fundamentalmente,
privação de bem (de ser); este bem pode ser não devido
(mal metafísico) ou devido (mal físico e moral) a uma
determinada natureza; se o bem é devido nasce o
verdadeiro problema do mal; a solução deste problema é
estética para o mal físico, moral (pecado original e
Redenção) para o mal moral (e físico).
Referncias Bibliograficas
Santo
Agostinho, in Os pensadores , vol.VI, Abril S.A., São Paulo, 1973.
Sciacca
M.F., História da Filosofia, vol. I, Editora Mestre Jou, São Paulo,
1967.